Quais são os limites da liberdade de cátedra?

Artigos pedagógicos
Leitura em
5
min
Publicado em
11
/
12/2019
Autor
Fabrício Garcia
CEO na Plataforma Qstione
Fabrício Garcia é um professor da área de saúde apaixonado pelas novas tecnologias educacionais. Seu foco principal de trabalho está em ajudar instituições de ensino e professores a implementar novas tecnologias que aumentem a eficiência educacional, justamente por acreditar que a tecnologia é o caminho mais simples para democratizar a educação de qualidade no Brasil.
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O professor não é livre para ensinar o que quer ou para simplesmente guiar os estudantes em direção aos conhecimentos considerados importantes para si próprio. Parece uma afirmativa dura, mas o princípio básico da liberdade individual consiste em não restringir a liberdade de terceiros (no caso, os estudantes), por isso a liberdade de ensinar remete o professor as suas próprias responsabilidades profissionais.

Determinar ou limitar o aprendizado de outrem a partir de suas próprias fronteiras morais e intelectuais é um ato contraditório para um professor, já que a função primordial da docência reside em abrir novas fronteiras de conhecimento, dando asas ao intelecto do estudante, sem interpor barreiras ou criar limitações de aprendizado. Portanto o ato de ensinar deve considerar a possibilidade do aprendiz superar o mestre em qualquer momento do processo ensino-aprendizagem, tornando tal ocorrência um evento de realização profissional para o professor.

Assim, a liberdade de cátedra tem limites. E isso é bom, pois tais limitações dão mais liberdade para o estudante aprender e torna o ensino um ato intrínseco de generosidade.

No entanto, antes de argumentar sobre quais são os limites da liberdade de cátedra, vamos definir alguns conceitos importantes à luz da legislação brasileira.

A liberdade de cátedra não é uma lei ou uma norma, trata-se de um princípio que, em tese, assegura a liberdade de aprender, de ensinar, de pesquisar, de divulgar conteúdos e conhecimentos diversos com o intuito de ampliar as possibilidades educacionais de um indivíduo. Dessa forma, o professor deve ser livre para utilizar diferentes meios pedagógicos para alcançar tais objetivos educacionais. O professor também é livre para opinar e manifestar seu posicionamento pessoal sobre um determinado assunto tratado em sala de aula.

Na minha opinião, tal princípio, por si só, não fere a liberdade de outrem, desde que um outro princípio muito importante seja respeitado pelo professor — o princípio da pluralidade de ideias e pensamentos.

Portanto, para seguir o princípio da pluralidade de ideias, o professor deve buscar apresentar os conteúdos de forma democrática, colocando à disposição do estudante a maior quantidade de informação possível, contrapondo ideias e contrastando diferentes formas de pensamento. Nesse contexto, o estudante poderá desenvolver o seu próprio pensamento crítico e reflexivo, pois a liberdade pensar advém da possibilidade de escolha ou de construir seu próprio saber a partir do conhecimento de diversas correntes de pensamento.

Mas, como a legislação brasileira trata a questão da liberdade de cátedra?

A legislação brasileira garante a liberdade de cátedra, mas também norteia e delimita essa liberdade.

Constituição Federal:

“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; (…).

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96:

“Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas
;
IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância; (…).

Basicamente, nossa legislação afirma que o professor é livre para ensinar e divulgar pensamentos com pluralismo de ideias e concepções pedagógicas. Contudo, na prática, a liberdade conferida ao professor pode limitar a aula a um restrito conjunto de ideias e informações selecionadas e apresentadas pelo professor. Isto é, o tamanho da liberdade de aprender dos estudantes se torna proporcional ao nível de pluralidade de ideias apresentadas pelo professor durante a aula.

Tal conclusão dá uma ideia do tamanho da responsabilidade do professor, pois ele vai delimitar as fronteiras de conhecimentos norteadores das aulas.

Indubitavelmente, segundo a nossa legislação, o professor deve ser um grande difusor de conhecimentos e ideias, mesmo que algumas sejam contraditórias entre si ou contra o ponto de vista do próprio professor, assim permitindo a imersão do estudante em uma grande diversidade de pensamentos, dando liberdade para que ele construa de forma autônoma sua base de conhecimento.

Dessa forma, podemos afirmar que a legislação brasileira é certeira ao associar a liberdade de ensino com pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.

Como isso deve acontecer dentro da sala de aula?

Por exemplo: um professor de literatura que tem como preferência pessoal os autores contemporâneos, numa aula objetivando a aquisição da habilidade de interpretar textos pelos alunos, deve apresentar não apenas textos de autores de sua preferência pessoal, mas também autores clássicos da literatura brasileira, como Machado de Assis e Olavo Bilac. Caso contrário, a aula se tornará uma mera caixa de ressonância dos pensamentos e ideais do professor. Quando isso acontece, a aula se torna um fracasso, sendo inegável o viés doutrinário do ensino.

O professor deve buscar incansavelmente o princípio do pluralismo de ideias, em detrimento, até mesmo, da sua liberdade de pensar, sendo generoso com o estudante, pois esse pluralismo permite a formação de um pensamento crítico, reflexivo e construído a partir dos filtros regidos pelos valores pessoais de cada indivíduo.

Da mesma forma, um professor de história com ideais alinhados à esquerda política, ao apresentar as bases históricas do movimento comunista aos estudantes, tem a obrigação de apresentar outras vertentes ideológicas como o liberalismo, o capitalismo, o conservadorismo, o conservantismo, etc. O professor de história deve apresentar o mundo ao estudante sob a perspectiva de uma lente grande angular e não sob visão míope da lente fechada de sua própria ideologia.

Outro aspecto importante é que o professor é livre para expressar sua opinião, desde que não modifique os conteúdos factuais da história. Isto é, os fatos históricos não podem ser reinterpretados de acordo com a sua própria visão de mundo ou ideologia. Trata-se de um pressuposto ético. Os fatos não podem ser deturpados em sala de aula.

Assim sendo, mesmo um professor com ideais comunistas, não pode negar os horrores do comunismo do século passado. Ele terá que falar da tragédia de Holodomor na Ucrânia e dos Gulags da antiga União Soviética. Esse mesmo professor é livre para usar a camisa de Che Guevara, mas não pode ocultar, por exemplo, que ele foi um assassino sanguinário segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (documento oficial).

Por outro lado, seguindo a mesma lógica, um professor, com viés político de direita, não deve suprimir as informações relacionadas aos horrores da ditadura comandada por Pinochet, no Chile; bem como a tragédia vivida pelos judeus no holocausto e sobre quaisquer eventos de violência ou discriminação que possam ser rotulados dentro do espectro político da direita.

A mesma lógica pedagógica se aplica a professores religiosos, alinhados a outras ideologias e crenças pessoais.

Vale ressaltar, que diante do pressuposto da pluralidade de ideias, o princípio da liberdade de cátedra garante ao professor que ele tenha a liberdade de opinar, entretanto, levando-se em consideração preceitos didáticos-pedagógicos, o excesso de conteúdo opinativo em sala de aula pode reprimir a expressão das próprias opiniões recém formadas pelos estudantes durante a aula, atrapalhando a avaliação do aprendizado do estudante pelo professor.                              

Portanto, uma aula com grande carga opinativa do professor pode se tornar um verdadeiro monólogo opressor para o estudante.

Lembre-se, o estudante deve ser o protagonista da aula e não o professor.

A aula tem objetivos de aprendizagem específicos.

A aula é um instrumento pedagógico que deve ser milimetricamente planejado, sendo o currículo um bastião norteador. O currículo determina quais são as habilidades e competências que devem ser adquiridas pelos estudantes durante as aulas e, por conseguinte, determina os conteúdos que servirão como objetos de conhecimento para aquisição de habilidades específicas. Assim, em cada aula, o professor tem objetivos específicos a serem atingidos.

Tais objetivos de aprendizagem devem estar descritos nos planos de aula, que, por sua vez, estão articulados com os planos de ensino. Em tese, é assim que as coisas deveriam acontecer, mas, no Brasil, as instituições de ensino nem sempre seguem as boas práticas pedagógicas.

Se cada aula tem objetivos de aprendizagem específicos, os professores, por princípio, não deveriam desviar o tema da aula para focar em suas considerações pessoais ou opiniões, pois, em muitos casos, nenhuma relação têm com o objetivo de aprendizagem proposto para aula.

Assim, um professor de matemática que utiliza 20 minutos de sua aula para falar de política, injustificadamente está prejudicando o bom andamento da aula, já que o tempo é o bem mais precioso do processo ensino-aprendizagem, pois ele não volta, e os minutos desviados para outros temas não previstos no plano de aula são traduzidos em prejuízo acadêmico para o estudante.

Em suma, estabelecer uma ingénierie pédagogique eficiente, termo francês que trata do conjunto de métodos e recursos utilizados no processo ensino-aprendizagem, é um dos maiores desafios educacionais para qualquer instituição de ensino, mas é imprescindível para educação.

Como manter a liberdade de cátedra sem perder o foco do ensino?

A transparência é caminho.

O currículo precisa ser estruturado em bases pedagógicas concretas, com objetivos de aprendizagem claros e corretamente descritos. Bem como, a sociedade precisa acompanhar o que está acontecendo nas salas de aula e, para isso, é preciso tornar o planejamento de ensino algo público.

O estudantes, professores e responsáveis precisam saber quais são as habilidades e competências que precisam ser adquiridas, bem como a finalidade de cada aula. A avaliação de estudantes deve ser contínua e contemplar indicadores de desempenho dos professores. Dessa forma, o trabalho do professor será acompanhado pela sociedade, e o foco será o resultado. Por outro lado, o professor terá a liberdade de ensinar também com o apoio da sociedade.

Nosso trabalho na Qstione é focado no aumento da transparência dos resultados das avaliações de estudantes. Pois acreditamos que o acompanhamento interno e externo do trabalhos dos professores depende uma avaliação criteriosa da evolução do aprendizado dos estudantes.

A liberdade sempre vem acompanhada da responsabilidade.
Não podia ser diferente com a liberdade de cátedra.

Até o próximo artigo!

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